domingo, 14 de fevereiro de 2010

Fernando Sabino

Certeza De tudo, ficaram três coisas: A certeza de que estamos sempre começando... A certeza de que precisamos continuar... A certeza de que seremos interrompidos antes de terminar... Portanto devemos: Fazer da interrupção um caminho novo... Da queda um passo de dança... Do medo, uma escada... Do sonho, uma ponte... Da procura, um encontro...

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Ferreira Gullar

Traduzir-se
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?
Ferreira Gullar

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Florbela Espanca

O nosso mundo Eu bebo a Vida, a Vida, a longos tragos Como um divino vinho de Falerno Poisando em ti o meu olhar eterno Como poisam as folhas sobre os lagos... Os meus sonhos agora são mais vagos O teu olhar em mim, hoje é mais terno... E a Vida já não é o rubro inferno Todo fantasmas tristes e presságios! A Vida, meu amor, quero vivê-la! Na mesma taça erguida em tuas mãos, Bocas unidas hemos de bebê-la! Que importa o mundo e as ilusões defuntas? ...Que importa o mundo e seus orgulhos vãos? ...O mundo, Amor! ... As nossas bocas juntas!... Florbela Espanca

José Saramago

Na ilha por vezes habitada
Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se aspalavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nasmãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, avontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.
José Saramago

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Fernando Pessoa

A minha vida é um barco abandonado
A minha vida é um barco abandonado
Infiel, no ermo porto, ao seu destino.
Por que não ergue ferro e segue o atino
De navegar, casado com o seu fado ?
Ah! falta quem o lance ao mar, e alado
Torne seu vulto em velas; peregrino
Frescor de afastamento, no divino
Amplexo da manhã, puro e salgado.

Morto corpo da ação sem vontade
Que o viva, vulto estéril de viver,
Boiando à tona inútil da saudade.

Os limos esverdeiam tua quilha,
O vento embala-te sem te mover,
E é para além do mar a ansiada Ilha.

Fernando Pessoa

sábado, 16 de janeiro de 2010

Cecília Meireles

Aqui Está minha Vida
Aqui está minha vida - esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.
Aqui está minha voz - esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.
Aqui está minha dor - este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.
Aqui está minha herança - este mar solitário,
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento.
(cecília Meireles)

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Luís da Câmara Cascudo

Tenho a impressão de ser o que chamam na Itália, Uomo qualunque, um homem igual aos outros. Toda a minha vida se resume naqueles dois versos de Afrânio Peixoto: Ensinou e escreveu, nada mais aconteceu. Sou de famílias tradicionais do Norte de Portugal e da ilha de São Miguel do Açores, vindas para o Rio Grande do Norte no começo do século XVIII. Não tiveram grande notoriedade, nem nota de desabono. Foram proprietários, fazendeiros, pequenos industriais, membros do Partido Conservador, por isso é que eu sou Cascudo, não o escaravelho, nem o peixe, o precostomus loricariae, mas, simplesmente, porque meu avô paterno era um dos chefes do Partido Conservador, e o Partido Conservador que chamavam Saquarema, também tinha um apelido de Partido Cascudo, quer dizer, teimoso, obstinado, e deram para chamar o meu avô de “o velho Cascudo”. Como eu sou filho único, para não desaparecer o título, comecei a usar também, porque meu pai foi o único a usar. Assim, não há família Cascudo, é um apelido que se tornou patronímico. Fui uma criança profissionalmente enfermiça: pálida, doente, com pulmões suspeitos. Assim, não tenho recordações de infância, nunca corri, nunca subi uma árvore, nunca brinquei livremente, passava a vida sentado vendo figuras e os jogos parados. Não tive companheiros de infância, decorrentemente, para meu destino, já a minha meninice, a minha infância, foi uma infância de livros, de ver figura e ver a paisagem que se transformou numa paisagem humana, e aí começa o mistério da vocação. Sempre amei as histórias contadas pelas amas e pelos espetáculos populares: a feira, o mercado, as procissões. Sempre amei o cotidiano e não o excepcional, e decorrentemente, os meus livros vêm dessa paixão pelo normal e pelo cotidiano.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Clarice Lispector

Um nome para o que eu sou, importa muito pouco. Importa o que eu gostaria de ser. O que eu gostaria de ser era uma lutadora. Quero dizer, uma pessoa que luta pelo bem dos outros. Isso desde pequena eu quis. Por que foi o destino me levando a escrever o que já escrevi, em vez de também desenvolver em mim a qualidade de lutadora que eu tinha? Em pequena, minha família por brincadeira chamava-me de ‘a protetora dos animais’. Porque bastava acusarem uma pessoa para eu imediatamente defendê-la. [...] No entanto, o que terminei sendo, e tão cedo? Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima.É pouco, é muito pouco.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Friedrich Nietzsche

Sei a minha sina. Um dia meu nome será lembrança de algo terrível. De uma crise como jamais houve sobre a Terra. Da mais profunda colisão de consciências. De uma decisão conjurada contra tudo que até então foi acreditado, santificado, requerido. Não sou um ser humano, sou uma dinamite, na transvaloração de todos os valores. Eis a minha fórmula para um ato de suprema octognose da humanidade que em mim se fez gene e carne... (Friedrich Nietzsche)

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Mário Quintana

Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! Eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Ah! mas o que querem são detalhes, cruezas, fofocas... Aí vai! Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades só há duas: ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois foi-nos prometida a Eternidade. Nasci no rigor do inverno, temperatura: 1grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não astava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston Churchill nascera prematuro - o mesmo tendo acontecido a sir Isaac Newton! Excusez du peu... Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que acho que nunca escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada disso! sou é caladão, introspectivo. Não sei porque sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros? Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de farmácia durante cinco anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Érico Veríssimo - que bem sabem (ou souberam) o que é a luta amorosa com as palavras. Mário Quintana

Para a escrita de si...

O auto-retrato No retrato que me faço ― traço a traço ― às vezes me pinto nuvem, às vezes me pinto árvore... às vezes me pinto coisas de que nem há mais lembrança... ou coisas que não existem mas que um dia existirão... e, desta lida, em que busco ― pouco a pouco ― Minha eterna semelhança, Ao final, que restará? Um desenho de criança... Corrigido por um louco! Mário Quintana